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sexta-feira, abril 20, 2012

Relações Juridicamente Impenetráveis : O Não Direito e a Vida.

Ainda nesta semana, segundo notícias provenientes do TJDF e publicadas na Tribuna do Direito, uma mulher, aos 79 anos, viu confirmada a decisão que a absolveu da acusação de ter tentado matar o próprio filho, por asfixia ou desligamento de aparelhos, já que ele vivia em estado vegetativo. Pelo que constou da matéria , publicada no site do jornal ( www.tribunadodireito.com.br), acusação e defesa irmanaram-se perante o Júri, abrindo mão de provas de Plenário e clamando pela absolvição, já que, freise-se, na hipótese, a aplicação da pena, vale dizer, do próprio Direito Penal,  não prestaria qualquer serviço à sociedade e tampouco serviria a qualquer propósito no quanto diz respeito à ré.  Prevenção inócua, segundo corretamente calcularam. Houve, asim, um recuo ou um abrupto estancamento da marcha da acusação, haja vista os meandros do caso, sua particular arquitetura, ou, como habitualmente se diz, em razão do cenário, do pano de fundo perante a qual se desenrolou a cena delituosa ( caso tenha mesmo ocorrido ). O que motiva condutas técnicas dessa natureza é sempre algo passível de uma averiguação, pelo inusitado do quadro, mas possível em razão de fatores sempre apreciáveis. O amor materno, o amor paterno, os conflitos existenciais familiares sempre que se desencaminham turbam não apenas a razão daqueles que o vivenciam, mas também, e principalmente, dos que são arrastados ao embate pela obrigação profissional de realizar sua apreciação, dando-lhe solução técnica. Evidente quanto a isso um choque entre a gramática racional do jurídico e a lógica circular dos sentimentos, realidades opostas, entre as quais não se firma o diálogo fluido e compreensível. Contribue para isso, talvez, a visão mitológica sobre amores paterno ou materno-filiais, que tatuam no incosciente coletivo a idéia totalizadora do bem, do harmônico e do verdadeiro como dados inatos dessas relações. O desvio do curso natural dessas naturais expectativas, então, é sempre recebido como fator intestino de uma convivência insondável pelas lentes racionais do observador, o que, por sua vez, redunda na impotência conceitual do universo jurídico para indicar desate perfeitamente adaptado a todos os meandros da situação. Restultado: o Direito bate em retirada, porque julgar nesses casos equivale a especular sobre saídas do pântano em noite  escura, com os riscos elevados de injustiça.  Em meados dos anos noventa, houve notícia de uma hipótese similar  no 1º Tribunal do Jùri de São Paulo, embora com um desfecho mais trágico.  Esse caso era marcante por peculiaridades estridentes, pois se cuidava de situação em que uma mãe de filho único, por ela cuidado até pouco além dos vinte anos com garras felinas, caíra gravemente doente, carecendo de cirurgias para correção  de mal gravíssimo. A mãe, que tomara o filhos para si, dele se adonando de uma maneira excessiva, foi ao desespero quando o anúncio sobre os resultados negativos da última intervenção cirúrgica, realizada aqui em São Paulo, fracassando, assim,  a última tentativa de restabelecimento das condições normais de saúde do filho. Foi então que cumprindo compromisso assumido para com ela própria, ainda no leito do hospital, fez um disparo de revólver contra a cabeça do menino, matando-o instantaneamente, para depois disparar contra o próprio crânio, na desesperada tentativa de suicídio, aliás, mal sucedida. A formalização da denúncia criminal pelo homicídio qualificado contra a mãe, aparentemente fácil, pela nitidez do homicídio qualificado, não se deu de maneira assim tão simples. A letra da lei, que descrevia hipótese de homicídio qualificado, parecia dizer respeito a circunstâncias outras.  Aquele fato, em si, tinha algo de formalmente adaptável ao tipo, mas não substancialmente. Havia um biombo invisível entre a situação e o mundo exterior que não admitia invasão ou prospecção. Era alguma coisa que transcendia e ao mesmo tempo apequenava em relevância qualquer visão normativa sobre o caso, convertendo a decisão judicial em alguma coisa sem sentido. Não se cuidava de um crime, mas de uma tragédia. Fato que logo depois perdeu completamente o interesse, à medida em que a mãe veio a tirar a própria vida, logo após ser posta em liberdade. O ponto comum entre esses dois acontecimentos judiciários parece ser a insuficiência do Direito ante certos aspectos ou pontos da realidade. Jean Carbonnier, jurista e sociólogo francês, em seu "Flexibilie Droit", dedica um ensaio alentado sobre o "não direito", no qual de forma esclarecedora, e tal como fez mais recentemente Stefano Rodottà,  trata dos limites impostos ou a serem impostos ao jurídico.  Como diz o primeiro, há situações em que, quando o próprio universo jurídico não recua, os fatos se rebelam contra sua imposição e disciplina, impondo naturalmente um obstáculo impenetrável, como se dá em hipóteses como essas, em que o fator visível é a absurda inutilidade do normativo onde os fatos já cumpriram seu papel.  Por vezes o não direito é produto de uma autorrestrição do próprio Direito, como se dá, por exemplo, na hipótese clássica do perdão judicial em matéria penal. Enfim, os fatos da vida são mais volumosos e a realidade, como se sabe, é bem maior que os limites estreitos do Direito.

terça-feira, abril 17, 2012

Ministério Público e Politica Partidária

A semana que passou trouxe à tona questões recorrentes e relativas ao relacionamento entre Ministério Pùblico e política partidária.  De um lado, ainda ecoaram notas sobre a escolha do segundo colocado para a eleição da chefia da instituição em São Paulo, a partir da ingerência relevante de setores institucionais vinculados à vida partidária ou mesmo ao governo estadual e a opção consumada pelo Governador. Além disto, continuou a sangrar pela imprensa, em todos os veículos, a reputação de importante membro do Senado Federal, ligado ao Ministério Público Goiano - e voz firmada como referência institucional nacionalmente - em razão de suspeitosas ligações com personagem acusada de compor cartel organizado em torno da prática de contravenção e outros delitos, segundo noticiário. Veicularam-se, ainda, matérias relativas à possibilidade, ou  meras suspeitas, de que colegas do Distrito Federal, mesmo que por simples afeições político-partidárias, tivessem antecipado informações ao Governo local, visando a evitar virtual procedimento policial ou judicial.  Todo essse quadro mostra, visivelmente, uma conexão entre atividade político-partidária por parte de integrantes da carreira e virtuais danos colaterais à instituição como decorrência de eventuais desvios de conduta, ou circunstâncias similiares, pois não há negar que em alguma medida acaba ela atingida por fatos dessa natureza, e naquilo que lhe é mais caro, ou seja, sua respeitabilidade.  Daí, uma questão se põe: são compatíveis as atividades politico-partidárias e a atuação funcional? Indispensável dizer inicialmente que um integrante da carreira pode entregar-se à vida política por dois caminhos básicos, ou seja, a filiação partidária, e conseqüente disputa de cargo eletivo, ou prestando serviços a governos com ocupação de cargos de confiança, tais como os de Secretário de Estado, Chefias de Gabinete etc. Posto isso, responder à indagação exige exame do texto constitucional ( CF/arts.127 e segs.), que se bem lido faz clara a intenção do constituinte em oferecer ao Ministério Público um perfil pautado pela autonomia e essencialidade em relação à atividade jurisdicional do Estado, dotada, ainda, de um regime jurídico que garante a seus integrantes independência funcional, vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios ( CF/art.128, § 5.º, I, 'a', 'b' e 'c'), idênticas, portanto, àquelas atinentes aos juízes.  Essa configuração, naturalmente, é decorrência da missão da qual foi incumbida, qual seja, a de ser um dos órgãos ocupados com a tutela do patrimônio público, do patrimônio social, dos direitos inerentes à infância, ao consumidor, ao idoso etc. (CF/art.129), o que lhe acarreta a imposição da obrigação de providenciar medidas administrativas e judiciais indispensáveis, inclusive perante o Estado, seus organismos e agentes,  quando necessário, tanto quanto perante agentes econômicos igualmente poderosos.  Trata-se, então, de instituição cuja atividade cotidiana  envolve possibilidade de enfrentamentos do poder econômico ou político, para fazer valer a aplicação isonômica da lei e das diretrizes jurídicas,  daí advindo a urgência das garantias como as outorgadas, em nome da busca por uma atitude isenta, técnica e não suscetível a influências externas de qualquer ordem.  Representar a sociedade civil, agindo em seu seu nome - e no seu exclusivo interesse -  para dar à ordem jurídica vitalidade e eficácia, tanto quanto garantir respeito pela democracia, são suas principais funções na órbita constitucional.  Inevitável, assim, que se reconheça em cada membro da instituição a condição de um agente político, conceito formado pela idéia de um servidor da causa pública capaz de realizar uma atividade com autonomia, vale dizer, sem amarras outras que não as ditadas pela ordem jurídico-legal. A contrapartida desse status, mas por similar necessidade, são as restrições pessoais, em tudo indispensáveis para que se assegure a legitimidade de seu labor de vigilância sobre tantas áreas da vida social, afastando senões decorrentes de um possível conflito de interesses. Logo, os que ingressam na carreira, por força de regra constitucional, acatam as obrigações ditadas pela disposição constitucional relativa às vedações (  CF/art. 128, par. 5.º, II), dentre elas a correspondente ao exercício de qualquer atividade político-partidária, ou de qualquer outra função pública concomitantemente, exceto a de magistério, além de outras, impossibilidades tornadas absolutas com o advento da EC 45/2004, pela identificação total entre os regimes jurídicos da Magistratura e do Ministério Público (CF/art.129, par.4.º).  Essas vedações, claro, fazem sentido, à medida que imunizam a instituição contra quaisquer influências ou cooptações  no exercício de suas atribuições,  colocando-a inteiramente à disposição de interesses não particularizados por opções de grupos ou agremiações político-partidários, já que comprometida com o interesse público primário, de alcance geral e conforme a legislação em vigor.  Nessa perspectiva, notadamente após a aludida emenda constitucional, que marca ponto culminante na evolução das diretrizes normativas voltadas à instituição,  restou clara a opção do constituinte em vetar a participação de membros da instituição em atividades político-partidárias, ou mesmo o exercício de funções públicas em outros poderes, cuja atividade, aliás,  pode vir a  ser externamente controlada por seus membros. A única dúvida pendente a respeito, concerne àqueles que ingressaram em momento anterior à promulgação da constituição em vigor, em função de disposição consignada no ADCT, que lhes abre exceção nesse sentido.  Note-se que sob todos os aspectos, a afronta a essas disposições constitucionais é  fator preocupante, por significar  modo oblíquo de restrição à autonomia funcional da instituição, com riscos sérios de  partidarização política e indesejável atrelamento a governos e interesses governamentais em diversos níveis, muitas vezes em oposição a interesses sociais relevantes.  Por outro lado, isso pode também afetar gravemente a ordem interna, com divisões alicerçadas na multicoloração ideológico-partidária de grupos externamente apoiados, em detrimento de uma atividade pautada pela unidade e eficiência exigidas. Situações do gênero, além do mais, podem tisnar a própria confiabilidade na instituição, já porque essa ou aquela medida não tomada, ou iniciada um tanto mais tardiamente, poderá despertar um grau de desconfiança, sempre negativo para a imagem institucional. Indispensável dizer que recentemente práticas de afastamentos de membros para se situarem em governos municipais de capitais, ou em governos estaduais tem se ampliado consideravelmente, e muito em função de uma equivocada atitude do CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público), ao revogar perigosamente sua Resolução n.º 05, o que tem franqueado, inclusive, e indesejavelmente, a cessão de membros da carreira para governos em geral, mesmo com afronta direta à norma constitucional. Tem se assistido, contra censura expressa de vários , e recentes, precedentes do STF,  uma cessão intensa de membros da carreira que nela ingressaram após a CF/88 em prol de governos de diversos níveis, criando-se um clima acintoso em relação ao interesse público de um modo geral.  Faz-se indispensável que os Ministérios Públicos atendam às diretrizes constitucionais, pois o abuso constante desse artifício, tem sacrificado o modelo institucional talhado pela Carta, sem trazer à sociedade qualquer benefício visível. Mas isso será assunto para um futuro post.

terça-feira, abril 10, 2012

O alargamento da família extensa....

No início deste mês, no site do IBDFAM, surgiu a notícia de que já tramita no Congresso Nacional, por iniciativa do Deputado Ubiati (PSB), a regulamentação da possibilidade de guarda dos animais domésticos na eventualidade de separações ou divórcios. Caso a matéria seja aprovada, enfim, haverá espaço para a garantia dos vínculos afetivos entre separandos ou divorciandos com seus animais de estimação, que, assim, passam a integrar - talvez - essa nova acepção de "família extensa"...Aliás, família é naturalmente um conceito abrangente e plural, sendo a inclusão desses integrantes apenas um reconhecimento natural de que os afetos, e quiçá dos mais  permanentes, digam respeito aos bichinhos...

A nomeação do Procurador-Geral e a Folha de São Paulo

No dia de hoje o excelente jornalista Helio Schwartzman, em editorial, faz análise daquilo que se deu em relação à recente nomeação do Procurador-Geral de Justiça ontem empossado pelo Órgão Especial do Colégio de Procuradores, cujos termos, embora suaves, envolvem, sim, uma crítica à reação indignada dos colegas no tocante à opção governamental. O foco marcado pelo tratamento da matéria diz respeito ao interesse público, que para seu autor - e acertadamente - deveria ser o único critério para definições relativas à chefia da instituição, o que, em princípio, excluiria interesses particulares de seus integrantes. Claro que em essência é impossível discordar do papel central do interesse público no processo de escolha do Procurador-Geral, mas com observações relevantes a respeito. A primeira delas, de fato, é a de que as opiniões internas sobre essa ou aquela candidatura, representadas, então, pelos votos dados, não significam opções de cunho eminentemente pessoal, divorciadas, em si, de uma percepção clara sobre o melhor em termos de realização concreta dos objetivos legais e constitucionais que cabem ao parquet, e, ao contrário, representam a manifestação bastante objetiva desse espírito público de seus integrantes. Entre os temas cogitados na recente campanha, por exemplo, os relativos à melhor estruturação das Promotorias de Justiça com servidores e equipamentos, o preenchimento de todos os cargos vagos, melhor fluência do trabalho com redução de instrumentos de controle burocráticos, planejamento sério e objetivo de atividades institucionais - até hoje quiméricos -, transparência dos órgãos superiores etc., foram o núcleo dos debates, em volume percentualmente bem superior àqueles repreentados por itens, por assim dizer, de uma agenda meramente sindical. Estes, vale dizer, ocuparam não mais do que cinco por cento dos debates. As preocupações, na proporção maior, eram voltadas ao sistemático garrote orçamentário imposto pelos recentes Governos Estaduais, que há alguns anos vêm persistindo numa política de gozo de uma fatia orçamentária cada vez menor, curiosamente deprimida na mesma proporção em que crescem os apelos sociais por um controle mais efetivo da máquina pública de um modo geral. Desse ponto de vista, o que indignou a todos os colegas, claramente, foi a redução do grande debate interno sobre o Ministério Público e seus compromissos a um discurso meramente sindical que teria sido proferido pelo vitorioso, Felipe Locke, conceito, ou preconceito, que de alguma maneira se produziu por estratégias de próceres governamentais cujos objetivos permanecem desconhecidos.  Óbvio, assim, que não se pode tomar a opinião da classe também preconcebidamente como inatamente voltada ao próprio umbigo, o que seria desqualificar injustificadamente o inegável espírito comprometido com os interesses sociais, como visível por meio da própria mídia. Apesar disso, é bem verdade, mostra-se muito razoável, como propõe o referido editorialista da FSP, que essa escolha seja, sim, submetida a uma espécie de controle externo, legítimo, para evitar abusividades, como é próprio de toda democracia.  Sua sugestão, por sinal, ou seja, a de que em lugar de um homem só  - o que se revela naturalmente inconcebível - essa etapa decisiva se realize por meio da Assembléia Legislativa, onde a diversidade de representantes da população melhor espelharia o justo desfecho do processo eleitoral, é mais aceitável, sendo a idéia já defendida, há algum tempo, por colegas.  Talvez a sugestão merecesse acolhida. Quem sabe até aperfeiçoada. Mas isso fica para um outro post.

sábado, abril 07, 2012

A Nomeação do Procurador-Geral de Justiça em São Paulo.


                                        Ao colega Felipe Locke Cavalcanti, pela coragem necessária.

O MPSP, enfim, tem um novo Procurador-Geral, saído das urnas, mas escolhido pelo Governador do Estado, no exercício de sua prerrogativa constitucional. Quebrando a tradição, respeitada nos últimos anos, inclusive pelo atual Chefe do Executivo em mandatos anteriores, a opção se fez recair sobre o segundo colocado, e, portanto, sobre alguém que não gozou do privilégio de ter sido o mais votado entre seus pares. Pode-se encarar o quadro composto pela intervenção da autoridade governamental no processo democrático interno da classe por diversos ângulos, como, aliás, a esta altura está ocorrendo em setores da sociedade e ainda pelos colegas em geral, impactados pela gravidade da situação nascida do ato de imperium inesperado. Entre as alternativas existe a que qualificaria como de normalidade institucional a escolha procedida, tão respeitável quão infensa a críticas de qualquer natureza,  já por fazer parte das regras do jogo. Obviamente, ungidos por atos dessa natureza normalmente resguardam sua posição difundindo essa ideia, em respeito à suposta vontade popular representada pelos votos dados em eleições gerais ao governante titular do poder de concessão dessa honraria. Outra maneira de ver o quadro posto é o de compreendê-lo como preocupante, já que a a vontade daqueles que se entregam ao trabalho cotidiano de construção institucional, a par de interesses sociais relevantes,  foi sacrificada perante o altar do inexplicável poder absoluto do governante não isento, que nesse caso gozaria do privilegium inequívoco, não oferecido ao mais puro dos cidadãos, de escolher aquele mais apto a acusá-lo em hipótese de grave atentado à probidade administrativa, com a ruptura indiscutível, já em sua origem, de um dos postulados constitucionais mais relevantes, ou seja, o da impessoalidade (art. 37/CF).  Esses dois modos de enxergar a situação deveriam inspirar não as partes envolvidas, mas aqueles a quem de fato interessa, uma reflexão mais profunda sobre processos de escolha governamentais muito relevantes. Obviamente, o maior interessado nisso é a própria sociedade, que por meio de suas instâncias próprias, as organizações não governamentais, as instituições de educação etc., deveria se impor o debate permanente a respeito disso, e com profundidade acentuada.  Como contribuição inicial a um processo a ser empalmado desde logo, cumpre analisar essas visões em perspectiva de modo racional. Sobre o primeiro modo de ver a situação, dentro de suposta normalidade institucional, pode-se observar que a Administração Pública, a gestão política dos grandes interesses da sociedade enfim, num Estado Democrático de Direito,  se realiza por meio de uma ótica participativa, equilibrada, colaborativa entre os diversos órgãos e poderes instituídos, de tal sorte a não ser possível supremacia absoluta na atividade de qualquer deles, sob pena da quebra de um indispensável equilíbrio. Desse ponto de vista, a interpretação segundo a qual cumpre ao Governador do Estado um poder absoluto de deliberação se choca naturalmente com a acepção hoje prevalecente, a medida que o torna legítimo titular de prerrogativa atentatória à autonomia institucional, também constitucionalmente prevista, revestindo-o, fabulariamente falando, da pele de lobo diante do cordeiro, impotente e conformado com sua condição de presa inescapável de seus virtuais apetites.  De outra parte, assentar a figura governamental sobre os alicerces de uma representatividade política capaz de legitimar suas escolhas, quaisquer que sejam, também é negar evidências claras de que a legitimidade do voto popular está em crise há algum tempo, com a pasteurização dos processos eleitorais, a construção midiática e mitológica de personagens que desfrutam do poder sem compromissos seguros com  projetos de campanha, dentre outras circunstâncias que tais, fator não desprezível, o que trinca o falso brilhante de uma suposta legitimidade eleitoral.  A propósito, é mais consentâneo com a realidade imaginar que  votos legitimam a investidura no cargo apenas, nem sempre sua permanência, daí as flutuações do sentimento social sobre seus governantes.  Tanto mais quando por vezes não se pejam em declarar que suas pretensões políticas divulgadas são meros pedacinhos de papel. Ademais disso, a normalidade institucional da escolha passa ao largo de uma realidade constitucional com ela contraditória, ou seja, aquela instituída pela missão funcional do Ministério Público de agir firmemente no controle da improbidade administrativa, flagrando com isso, cotidianamente, os gestores públicos em geral nos atos de contrariedade à lei, aos princípios da Administração, ou em situações mais degradantes envolvendo corrupção e outras mazelas sociais conhecidas. Disso nasce, claro, um natural antagonismo entre a atividade institucional e a política ou administrativa,  no mais das vezes pelas distinções conceituais de parte a parte, mas o fato inegável nessa convivência é que os interesses se extremam, ainda que pela mera discórdia entre a defesa do denominado interesse público primário, representado pelo ideário extraído do contexto jurídico, e o interesse público secundário, materializado na conversão dos primeiros em decisões administrativas. O poder absoluto do governante quanto à escolha do seu fiscal, pois, torna o sistema falho, debilitando os instrumentos de controle, os freios e contrapesos, com violação certa ao interesse público.   Desse ponto de vista, essa prerrogativa governamental, sob uma capa de ato legítimo, oculta a perversão do princípio do controle recíproco entre os Poderes, pois, pode refrear ou inibir a iniciativa do agente político capaz de levar ao Judiciário a obrigação de controle, expondo a riscos de perecimento os interesses sociais de relevância e gravidade. Sintomático no referente a isso a perigosa aproximação entre membros do Ministério Público e a atividade político-partidária, crescente outra vez em todo país, e notadamente em São Paulo, que conta com Procuradores de Justiça e Promotores em diversas Secretarias de Estado e órgãos governamentais, incluídos aí, também, junto ao Governo Federal, em parte, aliás, em franca contrariedade à própria Constituição Federal ( art. 128/CF), para se dar lugar a uma promiscuidade que jamais consultou , ou consulta, aos interesses público e social. É claro que esse fato não deve ter sido parte de uma estratégia com vistas a qualquer proveito em momentos decisivos como esse dos últimos quinze dias, mas é fato que o Governaor teve como escuta privilegiada os colegas que integram seu governo, ou de governos anteriores a ele ligados, sendo imaginável que a opção política interna de cada um deles contribuiu decisivamente para a deliberação tomada. Claro, assim, que a disputa eleitoral interna passa a ser afetada por esse fato, a medida que a vida partidária de colegas haverá de ser contributo importante para desfechos de processos eleitorais internos, e de acordo com interesses pessoais de cada um, afastando a possibilidade de um equilíbrio. Bastará, nessa medida, que o PGJ autorize - é ele a quem cabe o privilégio - a saída de colegas para que seu grupo político possa se beneficiar dessa medida, tomada de modo interessado ou não. Enfatiza-se, por sinal, que isso jamais poderia acontecer, mormente após a EC45/2004, que impediu, na visão de constitucionalistas ilustres como José Afonso da Silva,  qualquer saída da carreira para ingresso na vida política-partidária, o que nunca inibiu os MPs em geral de fe fazê-lo, sem qualquer glosa, a não ser do Supremo Tribunal Federal, que sempre tem se posicionado no sentido da proibição.  Por isso mesmo, então, há múltiplos riscos em se conservar o sistema atual, pela traição proporcionada por ele aos interesses relevantes. Logo, o segundo modo de enxergar a situação, como algo preocupante, contrário mesmo ao equilíbrio democrático entre poderes e instituições, é mais acertado.  Governantes estaduais, ao terem o privilégio de escolha do PGJ, rompem com a igualdade inerente ao due process of law, formal e material, por serem distinguidos, como cidadãos únicos, e acima da lei, do poder de escolha daquele apto a processá-los judicialmente em caso de ato de improbidade, o que inclui, ainda, a possibilidade de com isso determinar , mesmo indiretamente, pela prória influência do fator humano,  benfício à outros membros da classe política de seu interesse, também credores da prerrogativa de foro privilegiado e distinguidos com acusação, quando viáveis, partidas da figura do Procurador-Geral de Justiça.  Para além disso, o sistema vigente trata equivocadamente a nomeação daquele que irá empalmar a defesa dos interesses da sociedade como nomeação livre de integrante de seu governo, ou seja, independentemente de qualquer justificativa, como se se cuidasse de cargo em comissão ou de confiança, fator extrapolativo dos horizontes comedidos do mero gesto de controle participativo.  A dissimulação desse mecanismo como meio democrático é óbvia, falseando a defesa de interesses transcendentes e públicos. Por mero palpite, e independentemente de qualquer justificativa, por exemplo, se pode afastar o mais votado, recaindo a escolha, por mero gosto pessoal, naquele de quem, naturalmente, se esperará a curvatura da espinha, já que nascido do parto a fórceps, extraído do útero da classe em posicão genuflexa. Claro que com isso não se pode presumir, de antemão, que todo nomeado assim prestará vassalagem ao parteiro político de sua condição, mas o fato é que se a imprensa se interessasse de fato pelo assunto poderia, por exemplo, averiguar quantas vezes, nos últimos quinze anos, um Governador de Estado foi investigado pelo Ministério Público, de São Paulo ou do Brasil, ainda no exercício do respectivo mandato,  talvez com isso esclarecendo, a partir de números idôneos, o lado obscuro desse meio de escolha. Valeria a pena a investigação, já que os números a respeito são publicados de modo a que os próprios integrantes da carreira sintam dificuldade na elucidação da matéria.  Enfim, o fato acontecido aqui, pela segunda vez, embora em contextos distintos, obriga a uma reflexão mais aprofundada.

quinta-feira, abril 05, 2012

A proteção integral, a lei e os infortúnios da insensatez.

Se há algo louvável na arquitetura do microssistema de tutela jurídica à Infância e Juventude no Brasil é  que a Proteção Integral instituída abdicou da construção de uma legislação autoritária, perfilada sob o manto de uma acepção caritativa e baseada numa visão em que os amparados se tornem apenas um objeto da ação protetiva. Isso quer dizer, em outras palavras, a pretensão de uma troca de paradigmas de corte profundo, ou a permuta consciente de valores, com a a intenção objetiva de transfigurar as formas de intervenção a partir de diretrizes essencialmente jurídicas e dignas do Estado Democrático de Direito. Substituiu-se, portanto, de maneira consciente,  o ânimo assistencial e policialesco, próprio da  política autoritária que inspirava os textos constitucionais e legais vigentes ao tempo da concepção menorista, com a finalidade de engrandecer a ideia de crianças e jovens como pessoas humanas em formação e cuja dignidade está a reclamar do Estado, Família e Sociedade a colaboração necessária e respeitosa, visando ao desenvolvimento integral de sua personalidade.  Esses três entes, portanto, convertem-se em instituições encarregadas da facilitação desse desenvolvimento pessoal, obrigados ao reconhecimento da autonomia pessoal do sujeito protegido, de seus valores culturais próprios, de suas liberdades e de seus vínculos afetivos e familiares, cuja erosão e substituição por outros de natureza artificial somente se justifica em situações excepcionais, e, por óbvio, em virtude de motivos igualmente extraordinários. A bem desse crescimento sadio de crianças e jovens, então, é que o Estatuto da Criança e do Adolescente, muito antes de o próprio Direito de Família interessar-se pelo assunto, sobrevalorizou a afetividade como postulado essencial a nortear a disciplina das relações familiares, ao entendimento de que e o equilíbrio pessoal e o amadurecimento sadio dependem essencialmente de vínculos familiares bem estruturados.  Nessa medida é que o legislador, a partir da experiência recolhida das ciências afins, como a sociologia, a antropologia e psicologia,  definiu-se por uma tutela jurídica não apenas de crianças e jovens isoladamente, mas também às respectivas famílias. A propósito, não por menos  a legislação estatutária brasileira sempre foi vista como paradgmática para outros países, notadamente os latino-americanos. Essa percepção do assunto é que levou o legislador , em respeito ao próprio texto constitucional ( CF/art.227), a afirmar a existência de um direito fundamental à convivência familiar (art.19/ECA), significando, sobretudo, o direito à conservação dos vínculos com a família natural (art.25/ECA), ou seja, a biológica, cuja substituição é apenas possível na hipótese de um comprometimento pessoal grave de seu desenvolvimento, por omissão ou abuso insuperáveis dos pais (art. 38, par. 1.º/ECA), mas com a certeza de que apenas motivos gravíssimos e dessa natureza justificam providências abruptas, em função das quais se rompam laços afetivos tão relevantes como os de família.  A propósito, para que tal preocupação não fosse em tempo algum ignorada, o legislador estatutário, de maneira didática, enfatizou em disposição específica (ECA/ art. 23) a vedação absoluta a qualquer intervenção estatal na relação paterno ou materno-filial em virtude de carência de recursos materiais, a não ser para fazer valer as medidas protetivas da família, destinadas, inclusive, à garantia de acesso a meios capazes a propiciar a continuidade do cuidado com a prole (ECA/art. 129). Uma vez mais, a propósito, a legislação estatutária, afinada com o postulado do respeito do Estado pela Família, decretou a intervenção mínima como pressuposto de sua atividade nessa área, para preservar, aliás, a autonomia familiar, de todo prestigiada pela própria Constituição Federal ( art.226, par.7.º e par. 8º/CF-88). Nesse mesmo espírito, a propósito, a recente microrreforma estatutária introduzida pela Lei Federal n.º 12.010/2009, ao estabelecer diretivas para a aplicação das medidas de proteção, destacou dentre elas a relativa ao prevalecimento da família na proteção de crianças e adolescentes, ou seja, da família natural ( art.100, pr. único, X/ECA), de tal modo a mais uma vez enfatizar a excepcionalidade de providências que rompam os vínculos familiares. Dito isto, cabe perguntar: o que, senão à insensatez, se pode atribuir medidas de força constantemente reportadas pela mídia em relação a situações de miséria, fome, dificuldades de famílias brasileiras em relação ao cuidado com os filhos?  Os rompantes autoritários,  sobretudo provenientes de decisões liminares, de cognição restrita e superficial, continuam a implodir os sólidos alicerces de um sistema bem pensado, com valores próprios, de tal maneira a que agentes estatais, encarregados da proteção de seu espírito e compromissos constitucionais, proporcionem a erosão do sistema, por aplicá-lo hoje com a mentalidade retrógrada e medonhamente estrábica em relação aos valores hoje preponderantes. São os que ainda crêem na divindade da adoção, como se fosse ela uma panacéia, na ignorância de seus percalços, e de seu valor relativo em uma sociedade que se pretenda também justa em relação ao respeito aos círculos afetivos imprescindíveis à vida das pessoas - como o representado pela família biológica. Os casos de contrariedade às normas estatutárias vão se sucedendo, sobretudo pelo mero desprezo à lei ou pela miopia dos que insistem em exigir da família brasileira de renda modesta padrões de convivência - sobretudo material - dignos das de classe média alta, paradigma que tomado em consideração devasta qualquer possibilidade de defesa dos mais simples. A visão caritativa, personalista, lamentavelmente, ainda triunfa aqui e acolá. É imprescindível reagir em favor da lei e do espírito democrático, para proteger a família, a criança e o adolescente de uma marcha constante da insensatez.

quarta-feira, abril 04, 2012

Série Enunciados : Enunciado 410 - Jornadas de Direito Civil

"Enunciado 410" -  "Art. 157. A inexperiência a que se refere o art. 157 não deve necessariamente significar imaturidade ou desconhecimento em relação à prática de negócios jurídicos em geral, podendo ocorrer também quando o lesado, ainda que estipule contratos costumeiramente, não tenha conhecimento específico sobre o negócio em causa."

A lesão, como vício da vontade, exige que a desproporção entre os benefícios extraídos do negócio pelas partes se dê em função da inexperiência da parte que sofre com o encargo da prestação desproporcional aos benefícios. É relevante o enunciado em tela, à medida que a inexperiência revelada pelo dispositivo não pode receber uma interpretação sob o prisma meramente subjetivo, associando-a à virtual imaturidade ou desconhecimento, pois não se pode ignorar a realidade da própria modalidade do negócio celebrado como elemento facilitador, muitas vezes repleto de particularidades, de todo desconhecidas de uma das partes, o que deverá bastar para a caracterização da situação tipificada pelo dispositivo do art. 157 do Código Civil.  Não fosse assim, a prova da situação tornar-se-ia impossível em muitas situações, malgrado inegavelmente presente.

Casamento Homoafetivo: Precedente do STJ

As discussões sobre o casamento homoafetivo tomaram maior vulto, é certo, com a decisão do STF sobre as uniões estáveis homoafetivas na ADPF 132/RJ, em que a Corte, pelo voto do relator, Min. Ayres de Brito,  reconheceu que a CF/88, em seu art. 226, não emprestou ao conceito de família qualquer ideia mais ortodoxa,  e, ao contrário,  comprometeu-se com a tutela dos organismos familiares independentemente de formato pré-estabelecido.  Nesse memorável julgamento, a propósito, e a partir da apreciação do tema com acento no paradigma do julgamento conforme o texto constitucional, houve a afirmação da impossibilidade de uma interpretação avessa ao postulado da não discriminação, seja sob o ponto de vista do gênero, seja sob o aspecto do modelo de organização familiar. Essa decisão, nada obstante restrita ao campo das uniões informais, já prenunciava, por óbvio, um desbordamento da questão para o campo estrito do casamento, mesmo porque o próprio art.1726 do Código Civil, ao prever a possibilidade de conversão da união estável em casamento, iria conduzir a hipótese dos casamentos homoafetivos para os tribunais, com toda certeza. E, de fato, isso ocorreu. Não demoraram a espocar aqui e acolá decisões de juízos singulares admitindo a conversão de uniões estáveis homoafetivas em casamento, o que pode ser conferido, por exemplo, em julgados diversos insertos no site www.direitohomoafetivo.com.br, com testemunho eloqüente fornecido, por exemplo, pela decisão nos autos  do Processo Nº 224.01.2011.081916-6, da Comarca de Guarulhos, em que a Juíza Rafaela de Melo Rolemberg converteu união estável homoafetiva em casamento, ao fundamento da imperatividade da não discriminação, fomentada pelo acórdão referido do STF. É apenas um dos exemplos, dentre centenas de outros. A visão descortinada pelo acórdão da Corte Suprema, sobretudo no tocante à conformação, hoje, de um Direito Civil Constitucional, e, enfim, da projeção horizontal dos direitos fundamentais, tem fomentado decisões judiciais mais rentes às diretrizes da Carta em matéria de direito privado, estimulando na área do Direito de Família um ajuizamento das questões sob esse prisma. Rapidamente, como era de se esperar, também os olhares se voltaram à possibilidade da própria habilitação para o casamento homoafetivo, também aí, de quando em vez, surgindo decisões  de Juízos locais a admitindo, de modo a viabilizar a própria celebração oficial do casamento homoafetivo, passo mais decisivo no sentido da igualação material entre os gêneros em relação à matéria. Nesse assunto, aliás, um capítulo decisivo se estabeleceu recentemente, por meio de uma decisão relevante, em verdade um leading case no âmbito do STJ, no R.Esp.1183378/RS, em que o Min. Luiz Felipe Salomão, relator da matéria, se valendo dos elementos paradigmáticos do caso julgado pelo STF, estendeu ao casamento a possibilidade de revestir família homoafetiva, sendo crível, a partir de agora, a disseminação desse entendimento, do qual, diga-se, dificilmente a própria Suprema Corte poderá fugir quando conhecer da matéria. Leia a ementa, cujos termos , claríssimos e que falam por si: 

"DIREITO DE FAMÍLIA. CASAMENTO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO (HOMOAFETIVO). INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. INEXISTÊNCIA DE VEDAÇÃO EXPRESSA A QUE SE HABILITEM PARA O CASAMENTO PESSOAS DO MESMO SEXO. VEDAÇÃO IMPLÍCITA CONSTITUCIONALMENTE INACEITÁVEL. ORIENTAÇÃO PRINCIPIOLÓGICA CONFERIDA PELO STF NO JULGAMENTO DA ADPF N. 132/RJ E DA ADI N. 4.277/DF.
1. Embora criado pela Constituição Federal como guardião do direito infraconstitucional, no estado atual em que se encontra a evolução do direito privado, vigorante a fase histórica da constitucionalização do direito civil, não é possível ao STJ analisar as celeumas que lhe aportam "de costas" para a Constituição Federal, sob pena de ser entregue ao jurisdicionado um direito desatualizado e sem lastro na Lei Maior. Vale dizer, o Superior Tribunal de Justiça, cumprindo sua missão de uniformizar o direito infraconstitucional, não pode conferir à lei uma interpretação que não seja constitucionalmente aceita.
2. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento conjunto da ADPF n.
132/RJ e da ADI n. 4.277/DF, conferiu ao art. 1.723 do Código Civil de 2002 interpretação conforme à Constituição para dele excluir todo significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família.
3. Inaugura-se com a Constituição Federal de 1988 uma nova fase do direito de família e, consequentemente, do casamento, baseada na adoção de um explícito poliformismo familiar em que arranjos multifacetados são igualmente aptos a constituir esse núcleo doméstico chamado "família", recebendo todos eles a "especial proteção do Estado". Assim, é bem de ver que, em 1988, não houve uma recepção constitucional do conceito histórico de casamento, sempre considerado como via única para a constituição de família e, por vezes, um ambiente de subversão dos ora consagrados princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Agora, a concepção constitucional do casamento - diferentemente do que ocorria com os diplomas superados - deve ser necessariamente plural, porque plurais também são as famílias e, ademais, não é ele, o casamento, o destinatário final da proteção do Estado, mas apenas o intermediário de um propósito maior, que é a proteção da pessoa humana em sua inalienável dignidade.
4. O pluralismo familiar engendrado pela Constituição - explicitamente reconhecido em precedentes tanto desta Corte quanto do STF - impede se pretenda afirmar que as famílias formadas por pares homoafetivos sejam menos dignas de proteção do Estado, se comparadas com aquelas apoiadas na tradição e formadas por casais heteroafetivos.
5. O que importa agora, sob a égide da Carta de 1988, é que essas famílias multiformes recebam efetivamente a "especial proteção do Estado", e é tão somente em razão desse desígnio de especial proteção que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento, ciente o constituinte que, pelo casamento, o Estado melhor protege esse núcleo doméstico chamado família.
6. Com efeito, se é verdade que o casamento civil é a forma pela qual o Estado melhor protege a família, e sendo múltiplos os "arranjos" familiares reconhecidos pela Carta Magna, não há de ser negada essa via a nenhuma família que por ela optar, independentemente de orientação sexual dos partícipes, uma vez que as famílias constituídas por pares homoafetivos possuem os mesmos núcleos axiológicos daquelas constituídas por casais heteroafetivos, quais sejam, a dignidade das pessoas de seus membros e o afeto.
7. A igualdade e o tratamento isonômico supõem o direito a ser diferente, o direito à auto-afirmação e a um projeto de vida independente de tradições e ortodoxias. Em uma palavra: o direito à igualdade somente se realiza com plenitude se é garantido o direito à diferença. Conclusão diversa também não se mostra consentânea com um ordenamento constitucional que prevê o princípio do livre planejamento familiar (§ 7º do art. 226). E é importante ressaltar, nesse ponto, que o planejamento familiar se faz presente tão logo haja a decisão de duas pessoas em se unir, com escopo de constituir família, e desde esse momento a Constituição lhes franqueia ampla liberdade de escolha pela forma em que se dará a união.
8. Os arts. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565, todos do Código Civil de 2002, não vedam expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e não há como se enxergar uma vedação implícita ao casamento homoafetivo sem afronta a caros princípios constitucionais, como o da igualdade, o da não discriminação, o da dignidade da pessoa humana e os do pluralismo e livre planejamento familiar.
9. Não obstante a omissão legislativa sobre o tema, a maioria, mediante seus representantes eleitos, não poderia mesmo "democraticamente" decretar a perda de direitos civis da minoria pela qual eventualmente nutre alguma aversão. Nesse cenário, em regra é o Poder Judiciário - e não o Legislativo - que exerce um papel contramajoritário e protetivo de especialíssima importância, exatamente por não ser compromissado com as maiorias votantes, mas apenas com a lei e com a Constituição, sempre em vista a proteção dos direitos humanos fundamentais, sejam eles das minorias, sejam das maiorias. Dessa forma, ao contrário do que pensam os críticos, a democracia se fortalece, porquanto esta se reafirma como forma de governo, não das maiorias ocasionais, mas de todos.
10. Enquanto o Congresso Nacional, no caso brasileiro, não assume, explicitamente, sua coparticipação nesse processo constitucional de defesa e proteção dos socialmente vulneráveis, não pode o Poder Judiciário demitir-se desse mister, sob pena de aceitação tácita de um Estado que somente é "democrático" formalmente, sem que tal predicativo resista a uma mínima investigação acerca da universalização dos direitos civis.
11. Recurso especial provido.
(REsp 1183378/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 25/10/2011, DJe 01/02/2012)"

segunda-feira, abril 02, 2012

Série Enunciados CJF (Jornadas de Direito Civil )

"Enunciado 445" -  "Art. 927. O dano moral indenizável não pressupõe necessariamente a verificação de sentimentos humanos desagradáveis como dor ou sofrimento."

Comentário:  O disseminado equívoco de se confundir o dano moral com os reflexos sentimentais daqueles que o experimentam conduziram a orientação jurisprudencial à difusão de uma concepção desfocada da realidade. O dano é produto da ofensa ao direito e por esta se materializa, como bem afirma Anderson Schreiber (Direitos de Personalidade, Ed. Atlas), sendo desprezível a avaliação de virtual sofrimento ou dor. Daí a importância do enunciado, que resgata o verdadeiro caráter conceitual de dano moral.

Tema de Aula Recente: "Regime de Separação Obrigatória e Vênia Conjugal"


 Vai se sedimentando a orientação segundo a qual o casamento no regime da separação legal obrigatória de bens exige a venia conjugal. O Superior Tribunal de Justiça, já há dois anos, sedimentou entendimento nesse sentido, ao fundamento de que a Súmula 377, do Supremo Tribunal Federal, ao impor a comunhão nos aqüestos, irradia a extensão da regra do art. 1647 do Código Civil para a hipótese. O Min. Massami Uyeda, aliás, enfatiza isso em seu voto, lembrando, ademais, a necessidade de uma interpretação do texto legal à luz do princípio da dignidade humana, e a total conveniência de se efetivar, a partir daí, um controle dos cônjuges sobre a economia e patrimônio de interesse da família. Abaixo a ementa:
"RECURSO ESPECIAL - AÇÃO ANULATÓRIA DE AVAL - OUTORGA CONJUGAL PARA CÔNJUGES CASADOS SOB O REGIME DA SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS - NECESSIDADE - RECURSO PROVIDO.
1. É necessária a vênia conjugal para a prestação de aval por pessoa casada sob o regime da separação obrigatória de bens, à luz do artigo 1647, III, do Código Civil.
2. A exigência de outorga uxória ou marital para os negócios jurídicos de (presumidamente) maior expressão econômica previstos no artigo 1647 do Código Civil (como a prestação de aval ou a alienação de imóveis) decorre da necessidade de garantir a ambos os cônjuges meio de controle da gestão patrimonial, tendo em vista que, em eventual dissolução do vínculo matrimonial, os consortes terão interesse na partilha dos bens adquiridos onerosamente na constância do casamento.
3. Nas hipóteses de casamento sob o regime da separação legal, os consortes, por força da Súmula n. 377/STF, possuem o interesse pelos bens adquiridos onerosamente ao longo do casamento, razão por que é de rigor garantir-lhes o mecanismo de controle de outorga uxória/marital para os negócios jurídicos previstos no artigo 1647 da lei civil.
4. Recurso especial provido.
(REsp 1163074/PB, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/12/2009, DJe 04/02/2010)"

O STJ, O ECA e a Presunção de Violência nos Crimes Sexuais

É certo que o Direito não é, realmente, estático. A edificação e atualização cotidanas do ordenamento jurídico faz dele um organismo vivo, adaptável às alterações da realidade. Esse trabalho, porém, não se realiza sem esforços particulares, nem independentemente de uma arguta sensibilidade ao se apreender a própria realidade, o contexto social, o momento histórico em que a interpretação concretizadora da vontade da lei e das diretrizes do sistema esteja ocorrendo. O caso da presunção de violência em delitos sexuais praticados contra vulneráveis é uma dessas hipóteses em que a avaliação meramente conceitual, formalista , e mediante uma visão superficial da realidade em que a hipótese se coloca podem desencaminhar, como ocorreu, uma solução conforme o Direito, ainda que ao fundamento de um entendimento liberal ou garantista. A solução dada pela 3.a Seção do Superior Tribunal de Justiça para o caso divulgado amplamente na semana passada, em face da qual se relativizou a presunção legalmente imposta, erra ao dar as costas a uma das mais graves e complexas questões da paisagem social brasileira, ou seja, a prostituição infantil e suas conseqüências desafiadoras. Sem o desejar, a Corte naturalizou o drama social, recebendo a suposta voluntariedade com que garotas de doze anos ou menos são introduzidas no vasto mercado hedonista como decisão autônoma e respeitável da parte delas, ou como tragédia perante a qual só é dado ao Judiciário lamentar aos sussurros, passando ao largo do que não lhe competiria.  Do ponto de vista estritamente jurídico, triunfou uma visão liberal-penal, que resiste fortemente à criminalização por tipificações ancoradas na presunção, independentemente das próprias circunstâncias factuais às quais a norma se dirige, ficando claro que a idéia de valor que serviu de ponto de partida foi manejada como uma adaga mourisca empunhada às cegas, pondo abaixo o pano de fundo sobre cujo desenho a norma fora recortada, como se sua produção não visasse a qualquer fim útil, restrita ao abuso do legislador, por puro acinte. Uma vez mais, a vítima teve seu papel multidimensionado, como se ela própria fosse o elemento único a desencadear a cena delituosa, e como se sua situação pessoal hipossuficiente fosse invisível ao autor do crime, tanto quanto nos autos se limita  a ser, nunca ultrapssando os limites formais da consignação de um nome,  um prenome sem história, ou um número despido de qualquer relevância. A visão estritamente penalista da matéria é o erro de sempre, no descaso das normas e princípios constitucionais, das regras das legislações co-disciplinadoras do assunto, como a legislação estatutária. Para uma Corte onde temas atualíssimos como o do Diálogo das Fontes nunca são estranhos aos seus integrantes, o julgamento ficou mesmo a dever. A grita geral faz sentido. E, de fato, a Min. Eliana Calmon talvez tenha razão quanto à necessidade de o Judiciário conhecer melhor os anseios sociais, especialmente aqueles por detrás das estruturas jurídicas construídas e já consolidadas, de cujo zelo e guarda se encarrega.