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quinta-feira, maio 24, 2012

Adoção "Intuitu Personae"

Atribuir a alguém a condição de filho por ato de vontade significa perfilhar e, enfim, instituir voluntariamente laço parental civil - ou jurídico - onde inexistam vínculos genéticos. Adotar, em última análise. Essa forma especial de acolhimento familiar, com natureza de medida de proteção segundo a legislação estatutária ( ECA, art. 101, IX, c.c. art. 39) vem cercada de cuidados específicos por parte do sistema jurídico, primeiro por dizer respeito a modo de composição ou integração de alguém a núcleo familiar, e, para além disto, por importar em rompimento obrigatório de laços familiares precedentes (ECA, art. 41 "caput"). É que a família se revela objeto de proteção especial do Estado ( CF, art. 226, "caput"), de que decorre a tutela ampla das situações existenciais familiares, notadamente dos laços que dão sustentação à familia natural (ECA, art.25), estimados como prioritários pela doutrina da  proteção integral (CF, art. 227, "caput"). Daí porque comando constitucional prescreve a necessidade de o Estado assistir, ou melhor, estabelecer controle e acompanhamento às hipóteses de adoção ( CF, art. 227, par. 5º), o que se dá  por meio do Poder Judiciário, sobre quem recaiu o encargo ( ECA, art. 148, III e CC art. 1619). O que se conclui a partir dessas observações iniciais, portanto, é a aparente impossibilidade de que se cogitem de fórmulas de constituição de vínculos adotivos que escapem ao controle estatal, tampouco à maneira legalmente prevista para tanto, já porque as vias próprias inscritas na legislação estatutária, e na civil codificada, seriam únicas e incontornáveis. Especialmente no tocante às adoções de crianças e jovens, aliás, os cuidados legais são ampliados, a partir das necessidades de, por um lado, garantir que acolhimentos adotivos se dêem segundo o melhor interesse do adotando ( ECA, art. 43) e, por outro, com garantias de nenhuma concessão a privilégios ocasionais a adotantes determinados (ECA, art. 50), já pela urgência em se admitir o acesso à possibilidade de acolhimento familiar substitutivo em condições de igualdade em relação a quem o deseje. Neste ponto, por sinal, inscreveu-se na lei a obrigatoriedade  do "cadastro de adotantes",  banco de dados que reúne informações precisas sobre os interessados em adotar crianças e adolescentes, quando devidamente habilitados para tanto (ECA, art. 197-A e segs.). Na verdade, a prévia habilitação no cadastro converteu-se em requisito formal para a adoção, excepcionado apenas em situações legal e restritamente previstas ( ECA, art. 50, § 13), o que constitui modo de o Estado intervir no processo para cumprir seu papel constitucional e vigiar situação em que direitos pessoais relevantes, e indisponíveis, encontram-se em jogo. As exceções a essa exigência se encontram aprisionadas a três hipóteses, vale dizer, (a) à adoção unilateral (ECA, art. 41, § 1º), (b) adoção por parentes do adotando e (c) adoção por quem mantenha tutela ou guarda legal do adotando por três anos.  Nesse contexto, então, é que se coloca a discussão sobre a pertinência ou viabilidade técnica da denominada adoção "intuitu personae", cuja peculiaridade é a de conservar um caráter estritamente contratual, com acentuada influência da autonomia negocial e liberdade da vontade, cujo exercício alcança a escolha direta do adotante pelos pais do adotando ou por este mesmo quando adolescente, o que invariavelmente ocorre de modo a recair sobre sujeito não previamente inscrito no cadastro. Cuida-se, dessarte, de alternativa imprevista na legislação, o que alimenta um constante debate em torno de sua viabilidade jurídica, notadamente quando diga respeito à criança ou adolescente, em função dos rigores da lei no tocante à exigÊncia da prévia habilitação e inscrição no cadastro de adotantes.  Uma primeira opinião respeitável sobre o assunto é no sentido de sua impossibilidade técnica, notadamente após o novo arranjo legal do instituto trazido pela Lei Federal 12.210/2009, já porque justamente essa legislação trouxe a inclusão de cuidados mais restritos em relação ao cadastro, proibindo aparentemente a doção por pessoas nele não inscritas fora das restritas hipóteses de exceção. Nesse sentido, então, sem perder a natureza contratual, de sua essência, a nova lei de adoção teria restringido ainda mais as situações de legitimidade para o acolhimento familiar substitutivo por essa via, limitando-o aos adotantes previamente habilitados e cadastrados, sem lugar para a alternativa da adoção "intuitu personae" . Os que defendem essa visão apregoam seus benefícios, dentre os quais, inclusive, a evitação de delitos relativos  a situação do tipo, como, por exemplo, a promessa de entrega de filho ou pupilo para colocação em família substituta mediante a obtenção de vantagem  de cunho patrimonial ou não ( ECA, art. 238).  Desse ponto de vista, inegável a necessidade de prudência em relação a acontecimento do tipo, de ocorrência correntia, infelizmente. Mas, não se vendo na hipótese circunstância que indique a existência de indícios idôneos nesse sentido,  seria justificável essa orientação?  À evidência, não. Se é certo que a ausência de previsão legal para determinada circunstância não indica, por si, sua possibilidade jurídica, não se apresenta menos correta a convicção de que também não afaste a alternativa oposta, o que carece da necessidade de uma visão mais aprofundada do sistema como pressuposto de melhor resposta ao problema. Bem analisada a matéria, pois, deve-se ter presente o fato de que a proteção à criança e ao adolescente mereceram do próprio legislador ao tempo da edição da Lei Federal nº 12010/2009 uma preocupação com a exteriorização de diretrizes efetivas, dentre as quais aquela que diz respeito à atenção necessária ao superior interesse da criança ( ECA, art. 100, § único, IV), cujo espírito é o de sopesar nas circunstâncias concretas de cada caso os interesses em contraposição, promovendo seu balanceamento para fazer prevalecer aquele que condiga com a situação de melhor amparo possível  ao intresse primário do sujeito especial de direitos ( criança ou adolescente ) em questão. Trata-se, então, de diretriz que exige do magistrado o emprego do postulado da ponderação de interesses, atribuindo-lhe a discricionariedade para afastar obstáculos formais à garantia de tutela daquele que possa parecer o mais ajustado à realidade pessoal e circunstancial do adotando. Nesse entendimento, pois, forçosa parece ser a convicção de que a natureza contratual da adoção confirma a possibilidade da escolha pelos pais -  em confiança - dos futuros adotantes de seus filhos, tanto quanto a possibilidade de flexibilização do requisito formal de prévia habiilitação e inscrição no cadastro, pois pressuposta na hipótese uma vantagem satisfatória em relação ao interesse do adotando, a menos que surjam evidêncis do contrário. Foi nessa linha de consideração, aliás, o STJ, no R.Esp nº 1.172.067-MG,  admitiu a constituição do vínculo adotivo por essa via, caso em que o relator, Min. Massami Uyeda, em seu voto condutor, ponderou a prevalência do superior interesse da criança sobre a exigência da prévia habilitação e cadastramento dos adotantes, fixando a urgência de se observar em cada caso suas contingências e peculiaridades. É certo que crianças e jovens não são exatamente propriedade de seus pais, como corretamente argumenta Murilo Digiácomo (ECA Comentado/Malheiros -2011), o que em princípio militaria em desfavor da contratualidade direta na adoção, mas há que se distinguir o gesto irresponsável da entrega em adoção - por espírito argentário ou mero desinteresse na paternidade - daquele no qual os genitores responsavelmente visam dotar o filho de uma nova família capaz de ampará-lo adequadamente.  É nesse espírito que se tem admitido a hipótese, com os acautelamentos indispensáveis.

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